quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel - parte 2

Clique aqui e leia a parte 1.


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Acordar cedo para tomar o café do hotel é pior ainda para quem está acima do peso. Imediatamente, ao entrar no salão do café, a pessoa passa a ser vista não como um simples hóspede, mas também como um competidor. O instinto da busca por comida passa a se sobressair, e os hóspedes não começam a gritar e a proteger os próprios pratos apenas por convenção social. Entretanto, a partir daí passam a vigiar (nem sempre secretamente) as novas remessas de pão de queijo e tudo o que você come.

- Olha lá. Por isso está gordo desse jeito...
- É... Já é o terceiro sachê de açúcar, acredita? Cada um tem 20 calorias.
- Com tanta fruta ali na mesa... Pra quê o achocolatado?, se intrometerão.

Não importa o quanto o gordo já emagreceu, ou como foi o sofrimento dietético da semana: ele não tem direito a um café da manhã reforçado em uma eventualidade. Gordo está fadado a ter uma dieta de magro, independente da ocasião. Quando quer aproveitar, precisa se justificar.

- Mas tia... Está incluído na diária. Compenso as calorias comendo só salada no almoço.
- Olha lá, Marcelo. Depois não reclame do resultado na balança – ameaça a tia.
- Ah... O iogurte é light. Olha ali, ó – defende o sobrinho, apontando a placa na bandeja.
- E esses cinco pães de queijo?
- Ihhh. Trouxe pra todo mundo. Nem se eu fosse um dragão comeria tudo isso – se esquiva Marcelo.
- Não quero, obrigada. Já comi umas frutas com cereais – super saudável.

Enquanto isso o Marcelo virava um sachê suspeito no copo de suco.

- Marcelo! Suco de laranja já é doce! – explica a prima.
- É adoçante. Que mal tem?
- Não nos engane, Marcelo. GARÇOM! Isso aqui é adoçante? “Sacarina” é marca de açúcar, daquelas vagabundas? – questiona a tia.
- Tia...

Enquanto isso, a hóspede da mesa ao lado acompanha o debate, enquanto enrola metade de uma rosca doce no guardanapo. “Vou comer mais tarde. Afinal, está incluído”, pensa. Ah, e ela era magra, claro. Escapou dos julgamentos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel

Aproveitar esta mesa ou dormir até mais tarde?
Café da manhã de hotel é uma relação de amor e ódio. Você fica perdido em meio a tanta comida, e até seu lado mais otimista desconfia de que tudo aquilo está incluído na hospedagem. A tentação inicial é procurar alguma plaquinha que diga: “Rosquinha extra: R$2. Máximo de quatro panquecas por pessoa” – ou algo equivalente. Fica feliz quando não encontra restrições, naturalmente. Imediatamente, imagina uma espécie de open bar de iogurtes e sucos. E sem 10% do garçom, taxa de consumação, comandas ou o que for.

O lado odioso é precisar seguir o horário do hotel. Não se pode, simplesmente, querer tomar o café às três da tarde. Uma pena. Por isso, tomar café da manhã em hotel exige planejamento prévio. Um cronograma.

- Que horas vam’lá no café da manhã? – pergunta a mulher.
- Amanhã a gente vê – você responde.
- Mas está incluído, Jorge. Está incluído! Não podemos perder o café. Já viu como é bom o café da manhã do hotel? Precisamos decidir o horário para nos planejarmos.

E assim começa a burocratização dos seus momentos de folga.

- Tanto faz, Joana. E se eu quiser dormir até mais tarde?
- Mas Jorge, temos que acordar cedo pra aproveitar o dia – retruca a Joana.
- Eu aproveito o dia dormindo, Joana. Dormir pra mim é ganhar tempo. Aliás, se eu ficar cansado não aproveitarei mesmo o dia. Quem é que consegue sorrir para o sol com os olhos cheios de remela? – poetiza.
- Então precisamos dormir cedo.
- Mas já está tarde...

Impasse.

Depois de tomarem banho, o casal deita na cama.

- Decidiu, Jorge? – questiona a Joana.
- Decidiu o quê? – você mal-humoriza.
- O café, Jorge. Está incluído, lembra?
- Hm. Amanhã a gente decide! Na pior das hipóteses, vamos ali naquela padaria da esquina, almoçamos direto, sei lá. Se preciso, eu passo o dia com um Doritos, mesmo.
- Hmm. Não, Jorge. Pagamos caro... E café de hotel é ótimo! Aquelas panquecas são uma tentação – argumenta a esposa, gesticulando.
- Tentação é dormir.
- Você não tem jeito, Jorge. Então boa noite.
- Boa noite, Joana.

***

Dia seguinte, oito horas da manhã. O telefone do quarto toca e a Joana atende, animada. Era um casal de amigos que também estava no hotel.

-  Oooi, Cláudia. Sim, já vamos descer! Sim, claro. Senão não pegamos um bom café. Um beeeijo.

Desliga o telefone.

- Jorge. Acorda, Jorge.
- Grnhmmmmn.
- Vamos lá, se levante, homem. O pessoal já ligou. Temos que nos aprontar para tomar o café! Está incluído na diária, lembra?
- Nhmmpffn...
- JORGE!

Você acorda.

- Joana... OS SABONETINHOS TAMBÉM ESTÃO INCLUÍDOS E VOCÊ NÃO USA NENHUM DELES! – contesta, pulando da cama.
- É diferente, Jorge. Usaria se fossem comestíveis.
- Não sabia que eu tinha casado com um dinossauro. Que apetite, hein – você ironiza.
- Ihhh. Deixa de conversa. Enquanto eu tomo uma ducha vê se lava esse rosto.
- Zzz.

Feita a toalete, ambos correm e encaram o elevador. Encontram com o casal de amigos.

- Ô Jorge. Melhora essa cara, rapaz. Está cedo, mas sabe como é, né? Está incluído na diária... – explica a cônjuge.
- É, Jorge. E você pode até afanar alguns pãezinhos, heh. – sugere o cônjuge.

O grupo chega ao andar do café da manhã, ainda quase vazio. Você, ainda meio descabelado e tentando se lembrar se trocou a camisa do pijama, pega um pratinho. A partir de então passa a ser um novo Jorge. Uma espécie de... Jorgeossauro. Depois de tanta conversa, decide destruir pelo menos metade dos pãezinhos com sua mandíbula. Ficaria com manteiga besuntada até nas sobrancelhas, e beiraria a overdose com sucos e bolos artificiais. Sua frustração seria doce, afinal.

Antes de chegar à mesa, o saldo é de três pães de queijo e duas rosquinhas já devorados. Afinal, estava tudo incluído. Uma delícia.
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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Festa de criança, calorias e espetinhos de frango

Festa de criança tem uma aura diferente. Afinal, como é possível reunir dúzias de guris sem que (geralmente) haja algum tipo de catástrofe? Inexplicável. Assim que você chega, os empurrões em suas canelas (causados pelo tráfego mirim) denunciam que aquele é um ambiente incomum. Se não tomar cuidado, você pode até atropelar alguém. Ou ser atropelado por um comboio.

E festa com cama elástica? Magia pura. Afinal, talvez este seja o único método eficaz para confinar 27 crianças em um espaço com capacidade para umas 12, no máximo. Elimina-se, de uma vez só, a correria entre as mesas, a queda misteriosa das cadeiras e a tradicional ralação de joelhos. Você se preocupa com o risco de um esborrachamento coletivo no brinquedo, mas logo se resigna ao papel de convidado. Engole os palpites junto com um copinho de refrigerante.

Após os cumprimentos e a entrega do presente (que a criança nem olha, ou que fica guardado com alguém), acha uma mesa. De preferência perto da cozinha. Afinal, tão importante quanto o carinho com o aniversariante é o apreço às frituras e aos açúcares. Em festa de criança vale até sair da dieta. Vale destruir a dieta.

Assim que você se senta, descobre uma pequena bandeja de salgadinhos em sua mesa. Prontamente começa a degustar tudo, como se sua vida dependesse disso. Vem a garçonete:

- Aceita mais um pratinho, senhor?
- Sim, por favor - responde, glutão.

O ritual se repete algumas vezes, e suas pernas dormentes denunciam que você não se levantou durante a primeira hora do festejo. Interagiu apenas com uns dois adultos e com o Rodrigo, que descobriu ser sobrinho da prima de uma convidada. Criança esperta, o Rodrigo. Resolve se levantar e dar uma espiada no pula-pula – que a essa hora já havia concentrado 33 crianças e oito brinquedos (pisoteados) simultaneamente.

Levanta-se e logo oferecem uma coxinha. Você aceita, apesar de, em menos de uma hora, já ter consumido gordura suficiente para entupir a carótida. Uma delícia. No caminho, observa um grupo de crianças disputando uma espécie de corrida em uma escada, enquanto alguns dissidentes do pula-pula passavam de mesa em mesa demonstrando verdadeiros talentos de parkour.

Mal engole a coxinha, e logo em seguida chega a você o mini-espetinho de frango. Irresistível. A primeira mordida rapidamente dá lugar a momentos de pânico incontrolável: aquele fiapo de frango ficou agarrado entre os molares, e uma análise sensorial mais atenta mostra que os incisivos também foram vítimas.

Você luta com a língua, em silêncio, e nada do frango sair. Tenta exaustivamente arrancar aquele intruso de sua boca sem que ninguém perceba, mas o máximo que consegue é uma dor na língua. Resolve mudar o trajeto e ir ao banheiro. No caminho, desvia de sete caminhões de plástico, dois palhaços e um trenzinho de brinquedo, para se dar conta de que errou a direção. Volta, enquanto sente que, sem querer, quase chutou três garotos que (jura) brotaram do chão.

Ao chegar lá, percebe que não há espelho. Tampouco fio dental. Enxágua a boca, tenta arrancar uma linha da própria roupa para fazer o serviço sujo, sem sucesso. Derrotado, volta para a mesa. Higiênico e com uma obsessão especial por dentes limpos, você decide não falar mais. Nas conversas seguintes, responde apenas com grunhidos emitidos com a mão sobre a boca.

- Hmm. Hm-hum. Nmmmm, diz.
- Grhnonon hmm?, indaga.

Enquanto isso, mais um grupo de crianças excursiona pela escada. Muitas ainda carregam presentes, e a outra parte da turba se concentra em segurar um cachorro ainda filhote. “De onde surgiu esse cachorro?”, pensa. “Será que foi presente?”. Se tivesse que apontar um responsável pelo sequestro, o palpite iria para o menino com a máscara de leãozinho. O jeito fofo dele não o engana. Ou teria sido a Joana, aquela com a câmera? Uma fofura, também. Ou seria uma dessas anarquistas da imprensa, disfarçada? Hmm.

Chega a mãe do aniversariante e corta seus pensamentos.

- Vamos cantar o parabéns? – grita.
- Hmmphs! – você responde.

Nova jornada até a mesa do bolo. Mas dessa vez, ao menos, poderia comer os doces. Sem fiapos.

Festa de criança é uma beleza, mesmo.

domingo, 3 de agosto de 2014

Dilemas de consultório

O sujeito chega ao consultório e a secretária logo pega o telefone:

- Aloan. Sim, é do consultório do doutor Horácio. Sim, ele tem vaga pra próxima semana. Qual o nome? Sim, o nome. Eu preciso do nome para marcar a consulta, meobem. Do paciente, correto. Sim, paciente é o doente, no caso.

Enquanto isso você fica lá parado, esperando, com um olhar compreensivo (afinal, atender as ligações faz parte do trabalho dela). Fica quase admirado com a calma da jovem. Paciente é ela, pensa. Segue a conversa:

- É com dois T’s? Ah, sim, com dois P’s. Tem H depois? Ah, certo. Pode soletrar e confirmar então, por favor? Arram. Arram. Certo. Oquei. Entendi. Marcado então, seu Stepphano.

Ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que você abre um sorriso piedoso. Com um sinal, ela lhe convida a se aproximar, e pede o documento de identificação. Você o apresenta imediatamente, pulando (com sorte) o embaraço de abrir a carteira com pressa e despejar no chão meses de papeis acumulados, frutos da  sua procrastinação. Ao menos eliminou o risco de ser visto como um obsessivo compulsivo porco.

A secretária compara sua foto no documento com sua face atual. Você se sente ridículo – afinal, aquela foto tem mais de dez anos. E hoje você tem mais que uma dezena de novos fios brancos. Ela começa a preencher o cadastro eletrônico, mas logo se distrai com um e-mail. “Desculpe, mas hoje em dia, sabe como é... Temos que ficar conectados o tempo todo”. Volta ao cadastro.

- Profissão? Urrum. CPF? Endereço? Ah, sim. Conheço essa rua. Uma tia minha mora na vizinhança. E sabe que outro dia... Ela abre a boca e ameaça dizer mais uma palavra, mas logo o telefone volta a tocar. Sem pensar duas vezes, ela atende.

- Aloan. Não, o doutor Horácio não pode atender. Não, infelizmente não. Não, querida. Veja só: ele está em consulta. Daqui a pouquinho você volta a ligar, tá? Promeeeto que passo a ligação pra ele.

E você continua lá, parado, desejando apenas se misturar entre os outros pacientes na sala de espera. Por ser o único de pé (e talvez pelo nariz, que insiste em escorrer) é alvo de todos os olhares. Se sente meio panaca e pensa em buscar uma cadeira, se escondendo atrás de uma planta de plástico no cantinho. Mas logo a secretária retoma:

- Desculpa, meobem. Sabe como é, né? Esse telefone enlouquece a gente. Temos que atender.
- Tudo bem, tudo bem – você responde, enquanto pensa o oposto.

No finalzinho do cadastro, a secretária se lembra de uma informação crucial que deveria ter sido preenchida antes. Ela cancela tudo e abre outra planilha. Começa a digitar o nome e repete a ladainha:

- Profissão? Ah, é mesmo. CPF? Zero três? Não era zero seis? Ah, então tá. Tem razão. Endereço? Hmmmmm, já te falei que uma tia mora na vizi...

Toca o telefone.

- Aloan. Não, o Dr. Horácio ainda está em consulta, querida. Sim, eu sei que pedi para você ligar “daqui a pouquinho”. Acho que dez minutos. Isso.

Enquanto isso você começa a desconfiar da eficácia da sua presença física. A mediação é a chave, pensa. Discretamente pega seu smartphone e começa a redigir um e-mail com todos os dados da sua ficha. Envia, e a secretária o recebe. Imediatamente ela informa:

- Só mais um minutinho, meobem. Chegou outro e-mail, acho que deve ser importante. Hmm. Engraçado. Alguém que mora na mesma rua que minha t...

Toca o telefone.

- Aloan.

Pronto, era o fim. Virou chacota. Você passa a se sentir tão importante quanto a planta de plástico no cantinho. Se não precisasse tanto, desistiria da jornada. Mas a garganta já o atormentava há uma semana. Por fim, resolve agir: pega o telefone e o deixa a postos. Assim que a linha fica livre, liga para a secretária. Ali mesmo, na frente dela.

- Aloan.
- Oi, aqui é o Carlos.
- Quem? Desculpa, meobem. Estão falando um pouco alto aqui no consultório.
- O Carlos. Estou na sua frente.
- Mas por que você ligaria para mim estando na minha frente?
- EU MORO NA RUA DA SUA TIA. EU! – você esbraveja, enquanto gesticula e toma o telefone da mão da secretária.

Finalmente seria atendido – isso se a impressão digital já estivesse cadastrada pelo plano de saúde. Mas já era uma vitória. O homem venceu as máquinas, ainda que temporariamente.