quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Amor sazonal

Todo mundo já viveu um amor sazonal: aquele de temporada, fulminante, que deixa a perna trêmula e o corpo suando frio. É intenso, mas ele termina tão (ou mais) rápido quanto começou, mesmo que se deseje o contrário. Amor sazonal é tragédia anunciada: tem data de início, mas também prazo de validade.

Amor sazonal é amor cruel, que machuca sempre. Ele cativa, galanteia e sacia por algum tempo, mas apenas o suficiente para dar lugar a uma dependência visceral. Dependência não saciada vira crise. O amor, outrora tão desejado, torna-se tortura. Disfarçada de abstinência, ela lhe consome por meio de um doloroso sentimento de vazio. Amor sazonal é amor torturador, afinal.

Amor sazonal é apenas um gatilho a disparar desejos incompletos. Sem as armas certas, o amor diário e a cumplicidade dos olhares sinceros são alvos inatingíveis. Amor sazonal é paixão sem qualquer concretude, fadada ao comodismo. É amor líquido, que escapa por entre nossos dedos. É platonismo frágil e fajuto.

Trocar os passos seguros de um amor recompensador por um andar cambaleante é mais que impulsividade: é desvario; desperdiçar a chance de espantar a superficialidade e mergulhar na certeza de uma cumplicidade diária, insanidade.

Amor sazonal é apenas uma humilde exclamação em uma sentença sem sujeito aparente. No máximo uma oração saudosista que, apesar de parecer perfeita, não deixa de estar no pretérito. Ignorar a existência de infinitos períodos, no presente e no futuro, é um contrassenso.

Ousemos arriscar além de nossas vontades mais fortuitas! Covardia não é deixar de viver nossos desejos mais imediatos, e sim não ousar estendê-los. Amor sazonal é apenas uma parte (insuficiente) daqueles que não se contentam com a covardia de um travesseiro vazio. Que os amores genuínos permaneçam, no fim das contas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Existência, visibilidade e crachá

Não, o Guedes não começou a andar por aí disfarçado
de Groucho Marx.
O Guedes era o típico “introspectivo-sociável” do escritório: trabalhador, mas que não perdia uma boa piada. Não era um frequentador assíduo dos happy hours, mas marcava presença em alguns churrascos após o expediente. Homem bacana, que tinha uma boa relação com todos. Era lembrado com carinho no aniversário e em pequenas conquistas pessoais – como a data em que finalmente conseguiu completar a pós-graduação. Ganhou até festa.

Após três anos (sem férias) convivendo diariamente com as mesmas pessoas, Guedes decidiu abandonar o emprego. A partir daí, começou a perceber que sua existência era condicionada a um crachá com um número de inscrição pendurado no pescoço. A primeira suspeita aconteceu três meses depois de ter pedido demissão, ao avistar um antigo conhecido do trabalho no centro da cidade.

- Ô Pereira! Pereira! – chamou o Guedes, enquanto abanava os braços para o homem de terno a alguns passos dele.

O engravatado olhou e, diante de tanta insistência, caminhou até o antigo companheiro de trabalho.

- Oi. Tudo bem?
- E aí, rapaz! Quanto tempo, hein? Saudades de você. E como está o pessoal?
- O pessoal? Hmm, o pessoal está bem – respondeu o Pereira, meio sem saber quem era aquele homem (e a qual pessoal ele se referia).
- A galera do escritório, Pereira. Como eles estão? E a Flavinha? O Borges continua usando aquelas camisas ridículas? – riu o Guedes.
- Ahhh. Continua, continua – confirma o Pereira, ainda sem saber, ao certo, quem era aquele homem, e como ele conhecia tanto sobre sua vida profissional.
- Então tá. Vê se aparece. Manda um abraço para todo mundo – encerra o Guedes, percebendo que o Pereira não se lembrava dele (ou, ao menos, fingia não se lembrar).
- Pode deixar...

“Só pode ser a barba. Eu não usava barba naquela época. Mas... Será que fico tão irreconhecível assim? Acho que não. Sou apenas eu. De barba.”- pensa o Guedes.

Em outra situação, seis meses depois de pedir demissão do antigo trabalho, encontrou com a Flavinha em uma fila do teatro.

- Flavinha! Que saudade! Quanto tempo, hein? – se entusiasma o Guedes.
- Oooi..!? – responde a Flavinha, reticente.

E a história se repetiu. A Flavinha também não se lembrava do Guedes.

“Devem ter sido meus óculos... Eu quase não ia trabalhar de óculos naquela época. Isso, junto com a barba, deve ter me tornado irreconhecível.” – preferiu imaginar o Guedes.

Semana após semana, o Guedes encontrava com algum antigo companheiro de trabalho. Alguns trabalharam logo ao lado, trocaram comentários pessoais, conselhos, riram nas comemorações de fim de ano. Mas ainda assim não reconheciam o Guedes. Ao passarem por ele na rua, todos pareciam (ou fingiam) não vê-lo. Conveniência social ou distração genuína? (Afinal, o Guedes não tinha se tornado um grande figurão. Largou o emprego apenas porque queria mudar de ares, e continuava com a vidinha classe-média de sempre).

Seria possível que, em tão pouco tempo, tanto tenha mudado na fisionomia dele? O destino mostrou que não. A redenção do Guedes aconteceu quando ele se encontrou com a Julinha, um antigo amor da adolescência. Ele a avistou no supermercado.

- Julinha? – pergunta o Guedes, já meio sem graça.
- Não é possível...! Guedes, é você? Marquinhos Guedes? – se surpreende a mulher, abrindo um largo sorriso.
- Sim, eu mesmo! Quanto tempo... Mas... Como você me reconheceu, hein? – se espanta o Guedes, que já estava se sentindo invisível.
- Ahh, Guedes. Quem realmente deixa marcas na nossa vida nunca é esquecido, né? Aliás, você ficou muito bem de barba e com esses óculos intelectuais – ri a Julinha.
- Realmente... Impossível deixarmos marcas na vida de todo mundo... – autorreflete o Guedes.

O papo seguiu - dessa vez com um contato genuíno e espontâneo, sem burocracias ou falseamentos. Ele era novamente o Guedes, visível (e de barba).

sábado, 6 de setembro de 2014

Preguiça de desfazer as malas

Mauro era do tipo de homem que detestava a logística das viagens. A ideia de comprar as passagens com antecedência, reservar o hotel, montar itinerários, confirmar e rever as datas o aterrorizava. Mas, para ele, pior mesmo era o pânico envolvendo as malas (e sua burocracia sutil). Especificamente o desfazer das malas.

O arrumar da bagagem era um momento imaginativo, contemplativo, mesmo com o medo de se esquecer algum objeto essencial (que depois se mostraria dispensável). A burocracia de dobrar todas as roupas e ajustá-las ao tamanho (sempre insuficiente) das malas era o menor dos problemas, já que a expectativa de conhecer um novo lugar se sobrepunha à morosidade do processo. O suplício começava mesmo era na volta: o cansaço substituindo a euforia da ida, evoluindo para preguiça e se desenvolvendo, por fim, em procrastinação absoluta. Os resultados são conhecidos: malas (re)arrumadas às pressas, com tudo jogado lá dentro de qualquer jeito. Uma zona.

Foi em uma viagem de férias com a família que o maior dilema de Mauro começou.

- Gostei da viagem, mas tô cansado - diz o Mauro, ainda tirando os sapatos na sala de casa.
- Nem me fale. E olha que na metade do tempo você ficou na praia bebendo cerveja – retruca a esposa.
- E quem disse que tomar cerveja não cansa? Principalmente olhando o mar, toda aquela movimentação das ondas. É bonito, mas fica exaustivo depois de algumas horas – explica o Mauro.
- Deixa de ser preguiçoso! Isso porque você não deu sequer uma caminhada até o outro canto da praia. Eu fui até lá com a Julinha duas vezes. Uma beleza.
- Está louca? Já viu a dificuldade que é andar na areia? Meu guarda-sol é que estava uma beleza. A areia entre os dedos...
- Sei... Você não tem jeito, mesmo. Ó, fica aqui com a Julinha que vou tomar um banho. Já volto.
- Tá.

A esposa entrou no chuveiro e o Mauro afundou no sofá, com a Julinha dormindo, ao lado. Ligou a TV e se concentrou numa reportagem sobre os perigos das águas-vivas. “Ainda bem que nem entrei na água”, pensou. Ele ficou ali, remoendo outros argumentos para defender o sedentarismo das férias, enquanto a esposa tomava banho.

Volta a cônjuge.

- Nada como nosso próprio banheiro... Ahhhrr – celebra.
- Nem me fale. Minha vez de aproveitar... – responde o Mauro.
- Hmm, Mauro... As malas ainda estão ali no canto da sala. Leve-as para o quarto, pelo menos!
- Tô indo... Tô indo.

Depois de mais meia hora, foi. Com ele, arrastou as duas malas: uma dele e outra da mulher e da filha. Deixou tudo ao lado do guarda-roupa e seguiu para o banheiro, ainda quente do banho anterior.

***

Passados dois dias do retorno, a mala do Mauro continuava no mesmo lugar. Faltou ânimo para organizar tudo, e o máximo que fez foi tirar de lá algumas peças de roupas sujas, que estavam amontoadas em um cantinho.

- Ei, amor. Você pode pegar para mim aquela camisa listrada? Vou tomar um banho rápido – pede à esposa.
- Está em qual parte do guarda-roupa? Ainda não vi o que você fez por lá depois da viagem – questiona a cônjuge.
- Ainda está na mala, na verdade.
- Na mala? Você nem mexeu na sua mala? – se assusta a esposa, ativando seu senso de organização adormecido.
- Não. Tá tudo lá.
- Mauro... Não vou arrumar nada pra você, hein. Você não tem doze anos – ameaça.
- Eu sei, eu sei. Deu preguiça. Já viu o suplício que é encaixar tudo nos cabides? Ver se precisa passar novamente?
- Ai, Mauro...

Depois de uma semana, nada havia mudado. Foi aí que Mauro começou a questionar qual era a real necessidade de se possuir um guarda-roupa. E tantas roupas. Tudo o que precisava estava ali, na mala, ao alcance das mãos. E ainda havia várias divisórias para o desodorante, lâmina de barbear, umas duas calças e algumas camisas. A vida em uma mala.

Mais alguns dias se passaram, e a esposa flagrou o Mauro guardando as roupas lavadas e passadas na mala – e não no guarda-roupa.

- Vai viajar a trabalho, amor?
- Hmm... Não. Viajar?
- Então para que a mala?

Só aí ele percebeu o que estava fazendo. Mas não parou. Pensou por um minuto, e disse:

- Sabe aquele guarda-roupa maior que você queria? Não precisa se preocupar.
- Você decidiu comprar?
- Não, não. Você pode ficar com minhas duas portas. Se precisar, eu compro uma mala maior.

E arrastou tudo para debaixo da cama. Além de tudo, a mala tinha rodinhas. Vida compacta, prática e eficiente.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel - parte 2

Clique aqui e leia a parte 1.


***

Acordar cedo para tomar o café do hotel é pior ainda para quem está acima do peso. Imediatamente, ao entrar no salão do café, a pessoa passa a ser vista não como um simples hóspede, mas também como um competidor. O instinto da busca por comida passa a se sobressair, e os hóspedes não começam a gritar e a proteger os próprios pratos apenas por convenção social. Entretanto, a partir daí passam a vigiar (nem sempre secretamente) as novas remessas de pão de queijo e tudo o que você come.

- Olha lá. Por isso está gordo desse jeito...
- É... Já é o terceiro sachê de açúcar, acredita? Cada um tem 20 calorias.
- Com tanta fruta ali na mesa... Pra quê o achocolatado?, se intrometerão.

Não importa o quanto o gordo já emagreceu, ou como foi o sofrimento dietético da semana: ele não tem direito a um café da manhã reforçado em uma eventualidade. Gordo está fadado a ter uma dieta de magro, independente da ocasião. Quando quer aproveitar, precisa se justificar.

- Mas tia... Está incluído na diária. Compenso as calorias comendo só salada no almoço.
- Olha lá, Marcelo. Depois não reclame do resultado na balança – ameaça a tia.
- Ah... O iogurte é light. Olha ali, ó – defende o sobrinho, apontando a placa na bandeja.
- E esses cinco pães de queijo?
- Ihhh. Trouxe pra todo mundo. Nem se eu fosse um dragão comeria tudo isso – se esquiva Marcelo.
- Não quero, obrigada. Já comi umas frutas com cereais – super saudável.

Enquanto isso o Marcelo virava um sachê suspeito no copo de suco.

- Marcelo! Suco de laranja já é doce! – explica a prima.
- É adoçante. Que mal tem?
- Não nos engane, Marcelo. GARÇOM! Isso aqui é adoçante? “Sacarina” é marca de açúcar, daquelas vagabundas? – questiona a tia.
- Tia...

Enquanto isso, a hóspede da mesa ao lado acompanha o debate, enquanto enrola metade de uma rosca doce no guardanapo. “Vou comer mais tarde. Afinal, está incluído”, pensa. Ah, e ela era magra, claro. Escapou dos julgamentos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel

Aproveitar esta mesa ou dormir até mais tarde?
Café da manhã de hotel é uma relação de amor e ódio. Você fica perdido em meio a tanta comida, e até seu lado mais otimista desconfia de que tudo aquilo está incluído na hospedagem. A tentação inicial é procurar alguma plaquinha que diga: “Rosquinha extra: R$2. Máximo de quatro panquecas por pessoa” – ou algo equivalente. Fica feliz quando não encontra restrições, naturalmente. Imediatamente, imagina uma espécie de open bar de iogurtes e sucos. E sem 10% do garçom, taxa de consumação, comandas ou o que for.

O lado odioso é precisar seguir o horário do hotel. Não se pode, simplesmente, querer tomar o café às três da tarde. Uma pena. Por isso, tomar café da manhã em hotel exige planejamento prévio. Um cronograma.

- Que horas vam’lá no café da manhã? – pergunta a mulher.
- Amanhã a gente vê – você responde.
- Mas está incluído, Jorge. Está incluído! Não podemos perder o café. Já viu como é bom o café da manhã do hotel? Precisamos decidir o horário para nos planejarmos.

E assim começa a burocratização dos seus momentos de folga.

- Tanto faz, Joana. E se eu quiser dormir até mais tarde?
- Mas Jorge, temos que acordar cedo pra aproveitar o dia – retruca a Joana.
- Eu aproveito o dia dormindo, Joana. Dormir pra mim é ganhar tempo. Aliás, se eu ficar cansado não aproveitarei mesmo o dia. Quem é que consegue sorrir para o sol com os olhos cheios de remela? – poetiza.
- Então precisamos dormir cedo.
- Mas já está tarde...

Impasse.

Depois de tomarem banho, o casal deita na cama.

- Decidiu, Jorge? – questiona a Joana.
- Decidiu o quê? – você mal-humoriza.
- O café, Jorge. Está incluído, lembra?
- Hm. Amanhã a gente decide! Na pior das hipóteses, vamos ali naquela padaria da esquina, almoçamos direto, sei lá. Se preciso, eu passo o dia com um Doritos, mesmo.
- Hmm. Não, Jorge. Pagamos caro... E café de hotel é ótimo! Aquelas panquecas são uma tentação – argumenta a esposa, gesticulando.
- Tentação é dormir.
- Você não tem jeito, Jorge. Então boa noite.
- Boa noite, Joana.

***

Dia seguinte, oito horas da manhã. O telefone do quarto toca e a Joana atende, animada. Era um casal de amigos que também estava no hotel.

-  Oooi, Cláudia. Sim, já vamos descer! Sim, claro. Senão não pegamos um bom café. Um beeeijo.

Desliga o telefone.

- Jorge. Acorda, Jorge.
- Grnhmmmmn.
- Vamos lá, se levante, homem. O pessoal já ligou. Temos que nos aprontar para tomar o café! Está incluído na diária, lembra?
- Nhmmpffn...
- JORGE!

Você acorda.

- Joana... OS SABONETINHOS TAMBÉM ESTÃO INCLUÍDOS E VOCÊ NÃO USA NENHUM DELES! – contesta, pulando da cama.
- É diferente, Jorge. Usaria se fossem comestíveis.
- Não sabia que eu tinha casado com um dinossauro. Que apetite, hein – você ironiza.
- Ihhh. Deixa de conversa. Enquanto eu tomo uma ducha vê se lava esse rosto.
- Zzz.

Feita a toalete, ambos correm e encaram o elevador. Encontram com o casal de amigos.

- Ô Jorge. Melhora essa cara, rapaz. Está cedo, mas sabe como é, né? Está incluído na diária... – explica a cônjuge.
- É, Jorge. E você pode até afanar alguns pãezinhos, heh. – sugere o cônjuge.

O grupo chega ao andar do café da manhã, ainda quase vazio. Você, ainda meio descabelado e tentando se lembrar se trocou a camisa do pijama, pega um pratinho. A partir de então passa a ser um novo Jorge. Uma espécie de... Jorgeossauro. Depois de tanta conversa, decide destruir pelo menos metade dos pãezinhos com sua mandíbula. Ficaria com manteiga besuntada até nas sobrancelhas, e beiraria a overdose com sucos e bolos artificiais. Sua frustração seria doce, afinal.

Antes de chegar à mesa, o saldo é de três pães de queijo e duas rosquinhas já devorados. Afinal, estava tudo incluído. Uma delícia.
___

Clique aqui e leia a parte 2.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Festa de criança, calorias e espetinhos de frango

Festa de criança tem uma aura diferente. Afinal, como é possível reunir dúzias de guris sem que (geralmente) haja algum tipo de catástrofe? Inexplicável. Assim que você chega, os empurrões em suas canelas (causados pelo tráfego mirim) denunciam que aquele é um ambiente incomum. Se não tomar cuidado, você pode até atropelar alguém. Ou ser atropelado por um comboio.

E festa com cama elástica? Magia pura. Afinal, talvez este seja o único método eficaz para confinar 27 crianças em um espaço com capacidade para umas 12, no máximo. Elimina-se, de uma vez só, a correria entre as mesas, a queda misteriosa das cadeiras e a tradicional ralação de joelhos. Você se preocupa com o risco de um esborrachamento coletivo no brinquedo, mas logo se resigna ao papel de convidado. Engole os palpites junto com um copinho de refrigerante.

Após os cumprimentos e a entrega do presente (que a criança nem olha, ou que fica guardado com alguém), acha uma mesa. De preferência perto da cozinha. Afinal, tão importante quanto o carinho com o aniversariante é o apreço às frituras e aos açúcares. Em festa de criança vale até sair da dieta. Vale destruir a dieta.

Assim que você se senta, descobre uma pequena bandeja de salgadinhos em sua mesa. Prontamente começa a degustar tudo, como se sua vida dependesse disso. Vem a garçonete:

- Aceita mais um pratinho, senhor?
- Sim, por favor - responde, glutão.

O ritual se repete algumas vezes, e suas pernas dormentes denunciam que você não se levantou durante a primeira hora do festejo. Interagiu apenas com uns dois adultos e com o Rodrigo, que descobriu ser sobrinho da prima de uma convidada. Criança esperta, o Rodrigo. Resolve se levantar e dar uma espiada no pula-pula – que a essa hora já havia concentrado 33 crianças e oito brinquedos (pisoteados) simultaneamente.

Levanta-se e logo oferecem uma coxinha. Você aceita, apesar de, em menos de uma hora, já ter consumido gordura suficiente para entupir a carótida. Uma delícia. No caminho, observa um grupo de crianças disputando uma espécie de corrida em uma escada, enquanto alguns dissidentes do pula-pula passavam de mesa em mesa demonstrando verdadeiros talentos de parkour.

Mal engole a coxinha, e logo em seguida chega a você o mini-espetinho de frango. Irresistível. A primeira mordida rapidamente dá lugar a momentos de pânico incontrolável: aquele fiapo de frango ficou agarrado entre os molares, e uma análise sensorial mais atenta mostra que os incisivos também foram vítimas.

Você luta com a língua, em silêncio, e nada do frango sair. Tenta exaustivamente arrancar aquele intruso de sua boca sem que ninguém perceba, mas o máximo que consegue é uma dor na língua. Resolve mudar o trajeto e ir ao banheiro. No caminho, desvia de sete caminhões de plástico, dois palhaços e um trenzinho de brinquedo, para se dar conta de que errou a direção. Volta, enquanto sente que, sem querer, quase chutou três garotos que (jura) brotaram do chão.

Ao chegar lá, percebe que não há espelho. Tampouco fio dental. Enxágua a boca, tenta arrancar uma linha da própria roupa para fazer o serviço sujo, sem sucesso. Derrotado, volta para a mesa. Higiênico e com uma obsessão especial por dentes limpos, você decide não falar mais. Nas conversas seguintes, responde apenas com grunhidos emitidos com a mão sobre a boca.

- Hmm. Hm-hum. Nmmmm, diz.
- Grhnonon hmm?, indaga.

Enquanto isso, mais um grupo de crianças excursiona pela escada. Muitas ainda carregam presentes, e a outra parte da turba se concentra em segurar um cachorro ainda filhote. “De onde surgiu esse cachorro?”, pensa. “Será que foi presente?”. Se tivesse que apontar um responsável pelo sequestro, o palpite iria para o menino com a máscara de leãozinho. O jeito fofo dele não o engana. Ou teria sido a Joana, aquela com a câmera? Uma fofura, também. Ou seria uma dessas anarquistas da imprensa, disfarçada? Hmm.

Chega a mãe do aniversariante e corta seus pensamentos.

- Vamos cantar o parabéns? – grita.
- Hmmphs! – você responde.

Nova jornada até a mesa do bolo. Mas dessa vez, ao menos, poderia comer os doces. Sem fiapos.

Festa de criança é uma beleza, mesmo.

domingo, 3 de agosto de 2014

Dilemas de consultório

O sujeito chega ao consultório e a secretária logo pega o telefone:

- Aloan. Sim, é do consultório do doutor Horácio. Sim, ele tem vaga pra próxima semana. Qual o nome? Sim, o nome. Eu preciso do nome para marcar a consulta, meobem. Do paciente, correto. Sim, paciente é o doente, no caso.

Enquanto isso você fica lá parado, esperando, com um olhar compreensivo (afinal, atender as ligações faz parte do trabalho dela). Fica quase admirado com a calma da jovem. Paciente é ela, pensa. Segue a conversa:

- É com dois T’s? Ah, sim, com dois P’s. Tem H depois? Ah, certo. Pode soletrar e confirmar então, por favor? Arram. Arram. Certo. Oquei. Entendi. Marcado então, seu Stepphano.

Ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que você abre um sorriso piedoso. Com um sinal, ela lhe convida a se aproximar, e pede o documento de identificação. Você o apresenta imediatamente, pulando (com sorte) o embaraço de abrir a carteira com pressa e despejar no chão meses de papeis acumulados, frutos da  sua procrastinação. Ao menos eliminou o risco de ser visto como um obsessivo compulsivo porco.

A secretária compara sua foto no documento com sua face atual. Você se sente ridículo – afinal, aquela foto tem mais de dez anos. E hoje você tem mais que uma dezena de novos fios brancos. Ela começa a preencher o cadastro eletrônico, mas logo se distrai com um e-mail. “Desculpe, mas hoje em dia, sabe como é... Temos que ficar conectados o tempo todo”. Volta ao cadastro.

- Profissão? Urrum. CPF? Endereço? Ah, sim. Conheço essa rua. Uma tia minha mora na vizinhança. E sabe que outro dia... Ela abre a boca e ameaça dizer mais uma palavra, mas logo o telefone volta a tocar. Sem pensar duas vezes, ela atende.

- Aloan. Não, o doutor Horácio não pode atender. Não, infelizmente não. Não, querida. Veja só: ele está em consulta. Daqui a pouquinho você volta a ligar, tá? Promeeeto que passo a ligação pra ele.

E você continua lá, parado, desejando apenas se misturar entre os outros pacientes na sala de espera. Por ser o único de pé (e talvez pelo nariz, que insiste em escorrer) é alvo de todos os olhares. Se sente meio panaca e pensa em buscar uma cadeira, se escondendo atrás de uma planta de plástico no cantinho. Mas logo a secretária retoma:

- Desculpa, meobem. Sabe como é, né? Esse telefone enlouquece a gente. Temos que atender.
- Tudo bem, tudo bem – você responde, enquanto pensa o oposto.

No finalzinho do cadastro, a secretária se lembra de uma informação crucial que deveria ter sido preenchida antes. Ela cancela tudo e abre outra planilha. Começa a digitar o nome e repete a ladainha:

- Profissão? Ah, é mesmo. CPF? Zero três? Não era zero seis? Ah, então tá. Tem razão. Endereço? Hmmmmm, já te falei que uma tia mora na vizi...

Toca o telefone.

- Aloan. Não, o Dr. Horácio ainda está em consulta, querida. Sim, eu sei que pedi para você ligar “daqui a pouquinho”. Acho que dez minutos. Isso.

Enquanto isso você começa a desconfiar da eficácia da sua presença física. A mediação é a chave, pensa. Discretamente pega seu smartphone e começa a redigir um e-mail com todos os dados da sua ficha. Envia, e a secretária o recebe. Imediatamente ela informa:

- Só mais um minutinho, meobem. Chegou outro e-mail, acho que deve ser importante. Hmm. Engraçado. Alguém que mora na mesma rua que minha t...

Toca o telefone.

- Aloan.

Pronto, era o fim. Virou chacota. Você passa a se sentir tão importante quanto a planta de plástico no cantinho. Se não precisasse tanto, desistiria da jornada. Mas a garganta já o atormentava há uma semana. Por fim, resolve agir: pega o telefone e o deixa a postos. Assim que a linha fica livre, liga para a secretária. Ali mesmo, na frente dela.

- Aloan.
- Oi, aqui é o Carlos.
- Quem? Desculpa, meobem. Estão falando um pouco alto aqui no consultório.
- O Carlos. Estou na sua frente.
- Mas por que você ligaria para mim estando na minha frente?
- EU MORO NA RUA DA SUA TIA. EU! – você esbraveja, enquanto gesticula e toma o telefone da mão da secretária.

Finalmente seria atendido – isso se a impressão digital já estivesse cadastrada pelo plano de saúde. Mas já era uma vitória. O homem venceu as máquinas, ainda que temporariamente.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sobre o prazer das filas e um encontro com o Veríssimo

Filas triplas: diversão garantida.
Tive um professor que não se cansava de repetir que adorava filas. Todas elas, segundo ele, mereciam admiração - da fila do pão à temível espera pelo atendimento bancário. A justificativa era simples: lá você poderia fazer amizades, dar um pausa nos afazeres e se concentrar um pouco mais no que estava ao redor; olhar para (de fato) ver, enxergar em detalhes. Ficar "preso" na fila serviria como justificativa perfeita e quase universal, e, além disso, se a situação fosse bem aproveitada, poderia quase virar um programão de domingo. Melhor ainda se tivesse senha: assim daria para se sentar ou levantar, curtir um cafezinho, fazer a toalete e, com sorte, curtir a brisa do ar condicionado, dizia.

Particularmente acho que as filas são um sistema justo (até que alguém tente furá-las, claro), e, mais que isso: por mais entediantes que possam ser para os mais apressados ou pessimistas, funcionam como uma contagem regressiva. Chegar na outra ponta é praticamente uma vitória - basta perguntar a alguém que está na fila do banheiro. Não distribuem medalhas (e na maioria dos casos ainda pegam um pouco do seu dinheiro), mas há, invariavelmente, a sensação de dever cumprido, de ter alcançado o pote de ouro no final do arco-íris. Por alguns segundos tudo parece ter valido a pena. Sem glamour, chuva de papel picado ou garrafas de champanhe - mas ainda assim. Menos uma conta. Menos um problema.

O real motivo do post

"Err.. Oi, Veríssimo! Obrigado por me inspirar"
No meu caso, na outra ponta da fila estava um ídolo. Ontem conheci o Luís Fernando Veríssimo, minha inspiração há anos (aliás, o cito neste texto aqui, de 2006, quando eu ainda era um fedelho). Antes de chegar ao mestre, fiquei sabendo que o Exupéry, autor do Pequeno Príncipe, morou por um tempo na região de Petrópolis, discuti o governo do Getúlio, ouvi sobre Reforma Agrária e o papel da Princesa Isabel no processo. Também falei um pouco do Mário Prata, da carreira do próprio Veríssimo, sobre ervilhas e tofu. (Acabei entendendo melhor a teoria do meu antigo professor, aliás. Qualquer dia desses sairei com um banquinho em busca da fila mais descolada da cidade).

Sensação estranha essa de ver ali, na sua frente, a personificação de um ídolo. As pernas tremem um pouco, suas mãos passam a ser intrusas no seu próprio corpo. Sobram. "Devo cumprimentá-lo efusivamente? Acenar com a cabeça? Correr e abraçá-lo?"foram alguns dos pensamentos mais imediatos. Fiquei só no aperto de mão e na troca de algumas palavras, mas comprovei que, além do nome, ele é mesmo superlativo  absoluto sintético (já que é assumidamente mais calado, heh).

De repente, todos aqueles textos que fizeram (e fazem) parte da minha vida ganharam um pai de carne e osso, que tem nas palavras medidas uma fonte de inspiração não apenas literária, mas para a vida. O Veríssimo começou a escrever depois dos trinta, criou um estilo próprio e fugiu da sombra do pai. Foi um sucesso gradual e retumbante. Por isso é inspiração para os que ainda ficam perdidos/desiludidos/desorientados com todas as pressões profissionais e do cotidiano (como eu). O Veríssimo me mostrou que, por pior que uma situação pareça, ao menos rende uma crônica. Nem que seja sobre filas, braguilhas ou ervilhas. Valeu a pena esperar.

domingo, 27 de julho de 2014

Livro pra presente

Este é apenas um breve relato de L., um homem que possuía o hábito de dar livros de presente. Em qualquer ocasião, lá estava ele, com livro e dedicatória em mãos. Para L., o gesto significava mais do que o carinho comum atribuído ao presentear. Significava uma jornada prazerosa, concluída após muita pesquisa – afinal, a cada data comemorativa ele passava horas na livraria em busca do título ideal, ou vasculhava o repertório literário mental durante bons momentos. “É preciso, afinal, adequar a obra à pessoa”, acreditava. Tarefa delicada. Com tantas opções, haveria critérios demais a serem considerados. Letras demais a serem analisadas. Na dúvida, L. confiava nos seus próprios gostos e julgamentos.

Junto com esse costume, ele adquiriu também um hábito questionável: L. gostava de ler tudo logo após a compra. Mesmo que fosse um presente – o que significava violar as páginas de um novo livro, infringindo o prazer do receptor em desvirginar tão sedosas páginas. De modos pacatos, esta era a única ousadia a qual se permitia conscientemente. Era um maníaco literário. Desobedecia as amarras sociais e, ao pensar nisso, sorria.

Apesar de contestável, não se pode dizer que a quase defloração de lombadas e encadernamentos eram ações pouco generosas ou mesquinhas. L. pensava nisso tudo como um test-drive contra os maus títulos. Assim ele protegeria o presenteado das possíveis falácias gramaticais e checaria a qualidade de páginas e palavras (aproveitando para dar uma verificada atrás das orelhas – partes integrantes, apesar de esquecidas, de um corpo literário).

O gesto peculiar acabou criando um problema financeiro-psicológico para L.: no fim, ele não conseguia se desfazer das obras recém-adquiridas. Se fossem ruins, não haveria coragem para presentear; se boas, pior ainda: guardava para sua própria coleção. A solução? Ir novamente à livraria e comprar um novo exemplar – recomeçando toda a jornada (um tanto penosa em caso de desilusão ortográfico-literária). Mais aniversários, mais gastos, mais leituras acumuladas, tudo resultando em mais stress – que pelo menos rendia alguma cultura extra, no fim das contas.

Quando aumentou o círculo social, começou a enlouquecer. Mal dava conta das leituras cotidianas, e quando percebia já era refém de nova efeméride. Pensava com alegria no bolo e na esbórnia vindouros (como um bom glutão), mas lembrava também do livro a ser entregue como presente. Aquelas cedilhas pendentes, os travessões ameaçadores e os objetos nem sempre tão diretos o assombravam. Ficava desesperado, e, ao mesmo tempo, se entristecia ao lembrar da aposentadoria do trema. Por uma semana faltava tempo e sobrava angústia. Pior: sobravam palavras.

Em alguns meses passou a ter de lidar com mais de um aniversário por semana e, com isso, veio a cartada final: L. não mais conseguia fazer a leitura prévia das obras, como sua obsessão exigia. Para isso, precisaria de uma agenda própria, um planejamento literário. Desistiu. Por um tempo, viveu a sensação de aventura ao presentear com um título até então desconhecido. Mas foi dissuadido por seus próprios pensamentos: “E se o livro tivesse um magnífico título, avaliações perspicazes, mas, no fim das contas, falasse sobre... Cebolinhas? Aspargos? Tecidos e estampas?”, questionava. Um perigo paradoxal envolvendo palpitação e monotonia em centenas de páginas.

Por motivos de saúde (dele, não dos outros), acabou desistindo de presentear com livros; a partir de então eles seriam apenas artigos de uso próprio ou familiar. Optou por presentear com chocolates, guloseimas gordurosas e vinhos: menos intenso, mas (ironicamente) muito mais saudável. Na pior das hipóteses, ao menos o brinde já estaria garantido.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Sobre a desnecessária formalização do amor

Por que falar de amor é algo tão formal? Fico imaginando como seriam algumas situações sem as formalidades já padronizadas. Já há manuais, livros, tudo na tentativa de formalizar a fórmula certa. Sem sucesso.

Até mesmo para escrever sobre o assunto é assim: preparamos nossas palavras mais difíceis, ligamos sentenças com maestria ou tecemos versos como poetas da gramática, e não da paixão. Em muitas ocasiões nos preocupamos em registrar ali o léxico perfeito, e não o que nos consome, o que soa mais urgente. O visceral fica em segundo plano. (Talvez pela própria natureza da ideia ‘visceral’. O mais imediato é gritar e chorar, não escrever).

Exemplo clássico da formalidade do amor é o “precisamos conversar”. A frase traz, de imediato, presságios solenes e impessoais. Já armamos a nossa guarda enquanto buscamos nos desfazer do automático nó na garganta. Tentamos, inutilmente, nos proteger do sofrimento que parece inevitável: daquela punhalada nas costas que está prestes a nos rasgar por dentro. E depois agüentamos todo aquele impacto repentino. Uma bomba.

[que fique claro: não defendo, com isso, a conversa total e exclusivamente impessoal por sms, e-mail. Ainda acho que 'o meio é a mensagem' - alô, McLuhan!].

Até com os amigos é assim: "Vamos marcar de conversar? Preciso de alguns conselhos". Marca-se o encontro e, então, a revelação: "Acho que estou apaixonado pela Ju!". Por que não dizer logo? Comemorar? Adiantaria-se os cálculos da (im)provável reciprocidade.

E as alianças, então? Outra formalização do sentimento. Parece-nos que não basta sentir: é preciso mostrar que sentimos. E que sentimos muito, amamos intensamente, mais do que qualquer outro casal. Precisamos ser 'mais', superiores em tudo - inclusive na dor. Vivemos com a constante necessidade de aprovação (No plural. Não me excluo disso, pelo contrário).

Não desprezo ou rebaixo a importância do amor, mas destaco a naturalidade do sentimento. Todo mundo ama (ou já quis amar), e nada mais justo do que sentir, aproveitar sem delongas o que as doses de ocitocina nos proporcionam.

Já imaginou falar sobre ardentes paixões em uma mesa de bar? Entre os homens fala-se de sexo, mas raramente há divagações e questionamentos sem que haja embaraço de um dos presentes. "Homem não pode ser sensível desse jeito!", pensam. Muda-se o assunto rapidinho. Afinal, ninguém quer ser visto como o antiquado da turma. O 'fresco'.

De certa forma é interessante imaginar o amor descomplicado. Fica até cômico. "Oi, Sara! Barulhento aqui no bar, né? Mas então. Você é linda, adoro suas ideias, acho que me apaixonei por você!" – diria o rapaz, enquanto gesticula para que lhe passem as batatas na outra ponta da mesa e tenta, em vão, remover aquele pedaço da porção de frango à passarinho que insiste em permanecer entre seus incisivos.

No mesmo momento alguém também pediria: "garçom! Ei, garçom! Me traz aí um amor, mas nada dessas porcarias idealizadas! Porção? Não, não. Amor deve ser servido inteiro. E capricha no tempero!".

Definitivamente saboroso.

__

TÁXI

"O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão
deste universo.

Como será o amor das pessoas rudes? O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas de delicadeza."

                                      (CACASO, 2002)

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Saudosismo, trema e um eu-lírico neologista

Houve um tempo que o não-uso do trema significaria a perda de pontos na escola. Hoje é “cafonice”, sinal de que o escritor “não se adapta às mudanças do nosso tempo”.

Em breve nossos filhos dirão, enquanto observam curiosos os livros que ajudaram em nossa formação (cafona):

    _ Papai! Que estranho! O que são esses dois pontinhos que estão em cima do “u”?
    _ Chama-se trema, meu filho – responderemos, cheios de saudosismo.
    _ Trema? Para que serve isso?
    _ Antigamente nós o usávamos para indicar que o som do “u” era pronunciado. 
    _ Ah... Mas se tem “u” na palavra, por que a gente não ia falar o som dele?
    _ Guilherme, meu filho...

Quando este tempo chegar, espero não ter mais arrepios ao ver a nova grafia das palavras. Mesmo algum tempo depois da Reforma Ortográfica, me surpreendo ao verificar que ainda não atingi a autossuficiência (sic? hehe) gramatical. Talvez eu devesse deixar as regras de lado e dar mais espaço ao meu eu-lírico neologista e antiquado. Veremos.